quinta-feira, maio 25, 2006

"Melodia e sentimento revestem o batuque"*

    Acordei com um vizinho escutando música ... normal aqui por perto. E mais normal ainda, o fato do som estar alto, raramente esse povo lembra da aula de física, né ?
    E aquela célebre constatação de que o som se propaga no ar, é feia por mim ! Ainda sonolenta, me concentrei na música ...
    Nãooooooooooooo !! Pára tudo, um clássico do brega !!!
    Com essa, me levantei ... e fiquei pensando ... nossa, direto do fundo do baú, cheirando a naftalina. O intérprete ? Agnaldo Timóteo !!!
    Mas aqui na minha cabeça, tinha certeza de que conhecia uma versão melhor ! E lembrei das serestas que tinham aqui perto de casa ... Depois me peguei pensando em que gênero musical estaria tal pérola !
    Seria um bolero ???
    Que nada ! Pesquisando um pouco descobri ... SAMBA CANÇÃO !
É homônimo à cueca que seu vizinho vai pegar o jornal de manhã, crente que não tem ninguém olhando !!! hehheehehehe
    Mas o que seria este gênero ?!?!
    Dizem que o estilo é nascido na década de 30, tendo por característica um ritmo lento, cadenciado, influenciado mais tarde pela música estrangeira. Foi lançado por Aracy Cortes em 1928 com a gravação Ai, Ioiô de Henrique Vogeler. A música tinha sido lançada em duas ocasiões anteriores com outras letras & letristas e os títulos de Linda Flor (gravada por Vicente Celestino) e Meiga Flor (por Francisco Alves). Mas só na última versão, reescrita por exigência da diva do teatro de revista Araci Cortes, ela faria enorme sucesso, contribuindo para a fixação do gênero.
    Praticado por autores tão diversificados quanto Ary Barroso (que o tratava com desprezo apesar de ter composto duas obras-primas no ramo, Risque e Folha Morta) teria seu apogeu nas décadas de 40 e 50 ( quando teve grande influência do bolero e de outros ritmos estrangeiros). Seu conteúdo melancólico (que mais tarde incorporaria a palavra fossa) serviria ao romantismo descabelado do sambolero (de expoentes como o avatar brega Adelino Moreira) como o Molambo (de Jaime Florence, o Meira, professor de violão de Baden Powell e Augusto Mesquita) cujo intérprete, Roberto Luna, literalmente descabelava-se ao cantar. Foi o gênero da classe média por excelência e a temática de suas letras era quase sempre romântica, quando não assumindo um tom queixoso.
    Curiosamente, o samba-canção virou uma disputa , acreditam ???
    Recém separados, o casal Herivelto Martins e Dalva de Oliveira trocou acusações através de sambas-canções doloridos na década de 40. O clima era tão pesado que a lenda diz que Vingança, do mestre da matéria Lupicínio Rodrigues, provocou suicídio na voz trágica de Linda Batista. Nelson Gonçalves angariou um milhão de ouvintes no incipiente mercado brasileiro de 1957 para a pungente história de A Volta do Boêmio.
    Paradoxalmente, o mesmo estilo daria base para os altos vôos harmônicos da bossa nova, tendo sido utilizado nas primeiras composições de Tom Jobim como Incerteza, Faz uma Semana, Pensando em Você e Tereza da Praia. Precursores do movimento como os cantores Dick Farney (Marina, Copacabana), Dolores Duran (Castigo, Fim de Caso, A Noite do Meu Bem, Por Causa de Você, esta em parceria com Tom Jobim) e Tito Madi (Não Diga Não, Cansei de Ilusões) adotaram o estilo como plataforma intimista para desvincular-se da eloqüência rítmica do samba tradicional.
    Em declínio depois da reformulação estética da bossa nova, o samba-canção que também perdeu terreno para a balada, e ganhou ironias por seu sentimentalismo na regravação punk de Negue (Adelino Moreira/ Enzo de Almeida Passos) pelo grupo Camisa de Vênus, mantém seu vasto e rico acervo de obras em permanente processo de regravações.
    Há ainda uma versão maravilhosa na voz do puxador, oppppsssssss intérprete da Mangueira, Jamelão !
    A essa altura vocês devem estar curiosos para saber de qual canção estou falando ... com vocês, um clássico do samba-canção:
Matriz ou Filial
Autoria: Lucio Cardim

Quem sou eu
Pra ter direitos exclusivos sobre ela
Se eu não posso sustentar
Os sonhos dela
Se nada tenho e cada um vale o que tem
Quem sou eu
Pra sufocar a solidão da sua boca
Que hoje diz que é matriz e quase louca
Quando brigamos diz que é a filial
Afinal
Se amar demais passou a ser o meu defeito
É bem possível que eu não tenha mais direito
De ser matriz por ter somente amor pra dar
Afinal
O que ela pensa em conseguir me desprezando
Se sua sina sempre é voltar chorando
Arrependida me pedindo pra ficar
     Lúcio Cardim, cantor e compositor santista, foi muito feliz nesta música, relatando o drama de milhões de amantes que mesmo vivenciando "amores impossíveis". "Matriz ou Filial" é sua composição de maior sucesso tendo sido gravada cerca de 50 vezes pelos mais diferentes cantores como Jamelão, Ângela Maria, Cauby Peixoto, Altemar Dutra, Nora Nei, Marta Mendonça, Nelson Gonçalves, Wilson Miranda, Maria Bethânia, Chitãozinho e Chororó, Simone e muitos outros. Lúcio Cardim autor de 250 composições, teve 90 delas gravadas, faleceu aos 50 anos em 1982.

Ouçam aqui, este clássico na voz de Angela Maria e Cauby Peixoto !



*Tárik de Souza